Com medonho estridor, o Inferno fala

 

Geme o Centro mortal, o Abismo estala,
O Vento se enfurece, o Céu se enluta;
Do mais enorme peso a massa bruta
Rompe em soluços, em temor se abala.

O mar o seu prefixo termo escala;
Na prisão subterrânea o fogo luta,
E horrores vomitando em cada gruta,
Com medonho estridor o Inferno fala.

Tanta desordem, tanto desconcerto
Nos elementos todos, são indício,
Que a ruína universal vem já mui perto.

E o mais certo sinal do precipício,
É crescer sem temor o desacerto,
E subir nos mortais sem termo o vício.
                                                                 I, 36

Abade de Jazente, Poesias, INCM, p.66

Raposas


Março

Chove lá fora.
Há um silêncio enevoado e triste
a saber a demora
sobre tudo o que existe.

Minha alma recolhe-se do frio
e une as mãos às mãos do sentimento.
Chove lá fora. Engrossa o rio
do meu pensamento.

O dia agora é um lençol molhado
estendido ao longo dos caminhos.

Eu sou este dia de março
a arrefecer o amor dos primeiros ninhos.


Albano Martins, «Assim são as algas» - poesia 1950-2000, Campo das Letras, p.22

O último segundo


Os fios do coração



Tão difícil o encontro quão difícil é o apartamento.
Uma a uma as flores estiolam-se no quebranto do vento leste.
Os bichos-da-seda de primavera dobam até à morte os 
fios do coração:
O  pavio da vela tornando-se em cinzas antes de as lágrimas lhes secarem.
A preocupação do espelho da manhã é mudar nela o aspecto melancólico:
Alta noite a recitar um poema será que ela não sente o frio dos raios de luar?
A colina das fadas não é longe daqui.
Pássaro azul, apressa-te agora, vigia-me a estrada.


Li Shang-Yin, Poemas sem título, 812-858, China, Dinastia Tang, 
in Nocturno em Macau, de Maria Ondina Braga, Caminho, p.9